Talvez seja nossa falta de senso comunitário, a ausência de uma identidade nacional ou algum tipo de vácuo cultural. Mas o que acontece nas favelas brasileiras deveria ser entendido como uma atrocidade que se alimenta de uma juventude refém das facções. São crianças com a infância roubada, vidas destruídas no crime, quando não acabam dependentes de drogas e usadas como mais uma fonte de financiamento da violência.

Não se trata apenas de um fenômeno criminal, é uma crise humanitária abominável, na qual crianças e adolescentes são recrutados por grupos armados que, se olhados de maneira honesta, podem ser compreendidos como organizações terroristas. Entenda a urgência desse problema e que enfrentá-lo significa salvar a infância da miséria e de um destino cruel.
Existem muitas discussões sobre como essas favelas vieram a existir, muitas das respostas são contraditórias e pouco esclarecedoras. Com uma pesquisa mais cuidadosa, podemos encontrar análises mais concretas indicando que a falta de planejamento e urbanização cria uma situação propícia para o surgimento de periferias violentas.

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No livro “O Mito da Cidade Global”, por Renato Cymbalista, é possível entender que existe uma tendência em grandes movimentações populacionais sem planejamento de larga escala em formar espaços de exclusão, onde o estado e o desenvolvimento não alcançam. Se partimos do princípio de que a formação das favelas envolve vários fatores, incluindo décadas de urbanização negligente ou tendenciosa, não poderíamos esperar outro resultado. Vejamos os outros fatores, esses que podem nos dar mais certeza de que a leitura de Cymbalista cabe aos casos brasileiros.
Segundo uma bibliografia organizada por José Cláudio Souza Alves, “As Favelas do Rio de Janeiro – História e Direito”, houve uma migração intensa de diversas partes do estado para o centro urbano, algo comum quando uma região se desenvolve trazendo a esperança da prosperidade. O problema maior apontado por essa bibliografia foi causado pela conveniência do governo, que em vez de alocar essa população, escolheu simplesmente oficializar aquelas terras (fruto de invasão), tardando em oferecer infraestrutura mínima e presença do estado para manter a ordem. Como já podemos imaginar, ao optar por uma “solução” fácil, abriu precedentes perfeitos para o desastre, a formação de facções criminosas que depois de gerações viriam a se tornar organizações terroristas completas. Vale reforçar que isso significa o surgimento de um poder violento que fere diretamente a soberania brasileira.
Com tudo isso na mesa, talvez o estado tenha tanta culpa nisso quanto as próprias facções. O caso RJ oferece algumas pistas peculiares sobre isso. Para fazer esse diagnóstico traremos a teoria “Sociologia da Miséria”, pelo cientista político Zack Lopez.
A Sociologia da Miséria consiste na leitura de que o empobrecimento brasileiro não é acaso, nem mera negligência do estado, mas uma cruel e calculada engenharia social. Frequentemente o problema da miséria é endereçada a fatores históricos ou como resultado inevitável da desigualdade, no entanto, existem muitas evidências de que essa leitura é um erro rudimentar. Ao olharmos para as conveniências citadas anteriormente, já podemos assumir que não é interessante para os governantes dar atenção para esse tipo de problema, algo que exploraremos a seguir: Qual é o interesse de nossos políticos afinal? O que ganham com essa sabotagem?

Aparentemente, quanto mais o eleitor depender do estado, maior a influência de quem controla o orçamento sobre essas pessoas. Se esse orçamento é usado de modo a não resolver problemas responsáveis pela miséria da população, a tendência é manter essa dependência e por tanto perpetuar os políticos nessa dinâmica de poder. Pouco trabalho e eleição garantida, isso responde muito bem sobre os interesses envolvidos.
Para não ficarmos apenas na especulação, traremos alguns dados curiosos, se não preocupantes, que nos dão pistas fortes de que realmente a pobreza se tornou uma ferramenta de governabilidade.
O jornal europeu da associação economica trouxe um relatório chamado Poverty and the Political Economy of Public Education Spending: Evidence from Brazil (disponível em https://academic.oup.com), traz uma óbvia coincidência, ainda assim importante de ser estatisticamente confirmada, de que existe uma relação entre pessoas beneficiárias do bolsa família e os partidos associados a tal benefício. A ligação é clara, pessoas que moram nas cidades mais beneficiadas pelo auxílio tendem a votar nos mesmos partidos.
Outra evidência importante vem dos “Estudos sobre Assistência Social e Eleições”, relatórios da Fundação Getulio Vargas. Os números apontam que pessoas dependentes de auxílios públicos possuem uma relação de fidelidade eleitoral com os gestores que operam esses programas. Talvez nem seja necessário que as figuras políticas sejam realmente “provedores”, basta que sejam vinculados como responsáveis pelos benefícios.
O que isso tudo significa? Considerando que a classe política sabe muito bem o que está fazendo, não haveria motivos para tomarem decisões que resultem na emancipação da população pobre em relação ao governo. Justamente esse intuito que resulta nas condições favoráveis para o surgimento do crime organizado. Com o surgimento das facções nestes espaços, o que não impactaria a reeleição das figuras políticas, não poderíamos esperar nada além de uma convivência em pró a conveniência de bandidos e governantes. Podemos até imaginar que os políticos podem usar a crise de segurança como mais uma retórica para justificar sua permanência, numa eterna promessa de combater o crime organizado.

Tratando agora sobre o agravamento da situação ao ponto de reconhecermos tais facções como grupos terroristas, precisamos entender como a aliança se aprofunda para que atinjam esse status. Esse fenômeno é ainda mais grave do que já aparenta, basta olharmos para os paralelos que são encontrados no orientemédio (países nas proximidades de Israel), onde há a maior incidência de grupos terroristas. As semelhanças são bizarras, desde o controle territorial, uso de armamento militar, até aquilo que mais nos choca, a doutrinação de crianças para recrutamento. É possível verificar nessas situações que inicialmente essa força reprime fortemente a população, mas com o passar dos anos, conforme as gerações crescem no ambiente das facções, a convivência com a violência se torna normal e até atraente. A comunidade local se torna replicadora dos valores terroristas.
Qualquer pessoa atenta questionaria “mas como isso é possível dentro de uma país colossal como o Brasil? Não haveria resistência de outros grupos de interesse?” Uma dúvida legítima e requer uma resposta coerente. Nada disso se torna estranho se imaginarmos que não só a elite política participa dessa aliança, mas as elites do país como um todo — o que deveria ser visto como um abominável crime hediondo — o que incluiria a justificação de intelectuais para validar o espaço como suposta expressão da classe mais pobre, assim como a elite financeira e jurídica omissas por interesses pessoais. Nas palavras de Lopez “um pacto silencioso entre as elites”.

A robusta estrutura terrorista, a chamada narcocultura, somada com suas alianças eventuais presente entre as elites, aqueles que realmente teriam poder para evitar essa calamidade, são todos responsáveis pelo terrível destino das crianças e adolescentes reféns da cultura maldita que se formou nas favelas. Essas crianças não têm a possibilidade de escolher outro rumo para suas vidas, sua liberdade de escolha foi roubada. A palavra “pedagogia” presente no nome dessa leitura não é por acaso, existe um sistema cultural que garante a servidão dos jovens ao terrorismo.
Muitas pessoas têm uma compreensão limitada de como funciona o fenômeno da influência. Há tempos que autores vêm discutindo como a sociedade e sua cultura impactam diretamente a educação dos jovens. Os valores e comportamentos adquiridos em casa e reforçados no mundo e na comunidade escolar são essenciais para formação de um indivíduo, por exemplo, na criação de limites morais. Isso é algo tão forte que não pode ser modificado num simples contato com algum tipo de conteúdo ou prática divergente.
Lev Vygotsky, em sua obra “A Formação Social da Mente”, mostra como toda absorção requer um processo de reinteração ou reforço — algo que é observado na neurociência atualmente — isso quer dizer que, para um jovem se tornar um violento soldado do crime, ele precisa receber estímulos constantes no ambiente em que vive. Infelizmente isso nos leva a compreender que a própria comunidade da favela favorece a destruição da juventude.
Como se não bastasse, mesmo aqueles que se salvam podem encontrar um destino terrível. Não é incomum os casos de violência, tortura da mais cruel e desumana, contra pessoas que contrariam os valores da facção, podendo até mesmo levar ao fim de uma vida jovem.
Compreendendo bem a situação, é impossível resolvê-la sem uma intervenção muito dura das forças policiais e das forças armadas. Não poderia ser por acaso a urgência em demonizar a polícia e sua atuação, nem sequer precisamos nos limitar à narcocultura, a própria mídia tradicional e parte dos intelectuais tratam de propagar essa visão. Isso dificulta a cooperação da comunidade, uma vez que seu entendimento confuso levaria indivíduos a verem procedimentos das autoridades como ataques à favela.

Essas foram apenas alguns fragmentos da estrutura cultural terrorista, podemos ver também nas expressões artísticas; na música que canta glórias ao uso de poderio armado para tirar a vida de outro ser humano;
na letra que deprava o ato que nos permite perpetuar nossa espécie, levando diretamente à literal objetificação de jovens moças, como um pedaço desumanizado que existe apenas para a servitude; podemos ver nos símbolos, nas tatuagens e nos gestos que identificam um jovem como parte de uma facção, quando na verdade coloca um prazo de validade para sua própria vida.
Encerro esse texto não como de costume, como um colunista satisfeito por compartilhar conhecimento, mas como um cidadão atingido profundamente pela crueldade com a juventude periférica. Transformemos nossa revolta em vontade para fazer o que for necessário para vencer a batalha contra o terrorismo. Fica a recomendação para procurar a Frente Parlamentar Contra o Crime Organizado. Até a próxima.